Raspa de Tacho
Aos filhos de Acelino Brito - Dinha, Toinho, Maria, Adalgisa, e os outros,cujos nomes esqueci, apesar de lembrar bem dos seus rostos.
Imagino a dificuldade que tem um adolescente dos dias de hoje para entender como uma criança dos anos 50 e 60 poderia ser feliz sem internet, I-Pod, celular, computador, jogos virtuais, TV e até mesmo rádio. Pior ainda se morasse numa pequena cidade nordestina como a Umbuzeiro daquela época: cinema só um filme por mês e parque de diversão no Natal e na festa anual da Padroeira.
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Aquela linda cidade tinha Grupo Escolar mas não tinha ensino médio; tinha duas lindas praças embora não tivesse energia elétrica, água encanada, hospital e, sequer um médico.
A eletricidade só chegava às casas e na fraca iluminação das poucas ruas a partir das cinco da tarde, quando um enorme e barulhento motor à diesel era ligado, bem ao lado da nossa casa. Chamávamos o local de “usina” e estávamos sempre por lá durante o dia, aprontando alguma brincadeira. A cidade tinha energia até meia noite quando tudo voltava às escuras após três avisos com piscar de luzes a partir das 23:45. Quando o motor quebrava, quase toda a cidade ia até a usina pra ver o que tinha acontecido e se seria possível consertá-lo sem peças de reposição, o que levaria dias.
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Dois ônibus saiam por dia com destino ao Recife: um ao meio dia, e o outro às duas da madrugada, após todos os passageiros serem acordados em suas casas por um funcionário da empresa. Chegava ao Recife às oito e voltava ao meio dia. Hoje esse percurso é feito em menos de uma hora e meia.
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Os aparelhos de rádios funcionavam durante o dia ligados a uma bateria dessas de carro, que tinham que ser recarregadas com freqüência, ligadas a um equipamento chamado “tunga”. Seu Valdemir Donato era um dos poucos que dispunham desse aparelho, e nos emprestava sempre que precisávamos.
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As casas tinham cisternas (reservatórios para água) que eram abastecidas pelas águas das chuvas durante o inverno através de canaletas colocadas nos telhados. No verão, quando as cisternas esvaziavam, valíamo-nos da saudável água do Orondongo (uma fonte nas redondezas) que era trazida em ancoretas sobre o lombo do nosso jumento Roxinho, comandado pelo fiel escudeiro “Tõe Dodofinho”.
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Mamãe tinha Pupu e Nenén para ajudá-la com a casa, e assim podia dedicar mais tempo aos filhos com os deveres de casa e as deliciosas comidas que preparava. As horas de folga eram preenchidas com brincadeiras que exigiam muito esforço físico como correr de cavalo de pau (um cabo de vassoura com uma fita azul ou encarnada pendurada no “pescoço” e um barbante servindo de cabresto), jogar futebol em casa com bola de meia ou na rua com bola de borracha, entrar nas ruínas da igreja velha (para o nosso tamanho parecia um imenso castelo abandonado) e lutar espadas fabricadas por nós mesmos com uma vara de marmeleiro e uma quenga de coco para proteger a mão. Na ponta colocávamos uma borracha de lápis para não ferir o companheiro.
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Fabricávamos nossos próprios papagaios (pipas), caçávamos passarinhos de baleadeira, jogávamos bola de gude e pião nas ruas de barro, tomávamos banho de chuva sob o comando de papai, quando esta era torrencial, apesar dos gritos de medo de mamãe, assustada com a possibilidade de sermos atingidos por um raio.
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Criar filhos numa cidade pequena assim, e naquela época, era um ato heróico. Lembro da calma com que mamãe tratava das nossas feridas ou doenças – como a gripe asiática – apesar do medo estampado nos seus olhos. Quando caiu leite de avelóz nos meus olhos, tratou-os com clara de ovo e muitas orações. Os casos mais graves eram levados para Seo Lula e Dona Nen, os donos da farmácia que, sejamos honestos, eram o médico e parteira de toda a cidade.
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Vi, por duas vezes Seo Lula descer a rua principal numa carreira desembestada, enquanto, com a seringa numa das mãos e a injeção na outra, tentava passar o líquido da primeira para a segunda com medo de não dar tempo de salvar o paciente. Foi assim para atender Jacó, que faleceu de angina do peito, e papai, a quem aplicou cafeína, salvando-o da morte iminente.
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Tínhamos futebol aos domingos, vaquejada uma vez por ano, a festa da padroeira, o São João e um excelente carnaval.
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Umbuzeiro era uma cidade de amigos. As famílias se presenteavam com freqüência. Se alguém preparava uma deliciosa canjica, aproveitava para retribuir o bolo que ganhara do visinho. Se um tinha geladeira (a querosene), gelava as garrafas de suco para o almoço do amigo que não tinha.
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Dona Terta, a melhor costureira da cidade e grande amiga de mamãe, confeccionava nossas roupas, conseguindo uma brecha entre as muitas encomendas, para não deixar ninguém mal satisfeito. As roupas mais simples mamãe mesmo fazia.
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O filho mais novo de Da. Terta - Walter Moura Lins - morava em Recife e era baterista da orquestra da TV Jornal do Comércio, e aparecia tocando por partitura durante o programa Você Faz o Show, todos os domingos, para deleite de papai que ficava encantado com alguém que tocava bateria por partitura. Muitos anos depois (1986 - 1988) tive o prazer de ter Warter tocando no meu bar "El Paso" na revitalização da Rua do Bom Jesus.
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Seo Acelino Brito costumava nos presentear com a raspa do tacho onde fabricava queijo de manteiga, ou com um prato fundo cheio de queijo quente, ainda derretido. Uma vez este presente chegou na hora do almoço, e mamãe desmanchou no fogo uma “lata” de goiabada com um copo de água e outro de vinho tinto. Inesquecível aquele sabor do queijo e da goiabada ainda quentes, como sobremesa.
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Seo Acelino e sua família eram um dos orgulhos da nossa cidade. Era um homem muito alto e forte, alvo e de cabelos grisalhos. Suas filhas eram lindas, com “maçãs do rosto” de causar inveja a qualquer Sophia Loren. Lembro de Adalgisa com sua pele cor de rosa, e de Maria, uma morena clara. Lembro ainda das caras das outras, mas não dos seus nomes. Os filhos homens eram muito fortes e corajosos. A casa da fazenda deles ficava ao lado do cemitério da cidade, e eles nos contavam que brincavam de esconder por entre as catacumbas. Só em saber disso eu já não dormia. Íamos algumas vezes até a fazenda deles, onde colhíamos mel de abelhas e andávamos a cavalo no pelo. Eram todos muito educados e fazem parte das melhores lembranças que guardo daquele tempo.
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Aos 13 anos eu estava interno no Colégio Americano Batista daqui de Recife, e recebi de mamãe, por um portador, um grande pedaço de queijo de manteiga da fazenda de Seo Acelino. Acanhado, pois era um dos primeiros meses de internato, guardei o queijo no meu armário, que se destinava a produtos de higiene pessoal e material escolar.
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Nos primeiros dias não lembrei de descer com o queijo para o café da manhã nem para o jantar. Abafado no armário, depois de uma semana o cheiro já não era dos melhores, e agora eu já não descia com ele por esse motivo. Os dias foram se passando e o mau cheiro aumentando no dormitório. Chegaram a desratizar todo o colégio achando que era rato morto e que poderia haver uma peste. Quando ameaçaram abrir todos os armários para descobrir do que se tratava, acordei de madrugada e joguei o queijo pela janela, caindo bem ao lado do refeitório. Na manhã seguinte foi o maior comentário: uns achavam que o fedor vinha daquele queijo que já estava ali mesmo; enquanto, outros, mais espertos, entenderam que alguém atirara o queijo do primeiro andar. Passei dias sem poder abrir meu armário com alguém por perto, até o mau cheiro desaparecer.
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Éramos imensamente felizes naquela Umbuzeiro.
Rodolfo Vasconcellos
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